Dream Shard

terça-feira, agosto 01, 2006

Anjo Nocturno

Cap. I
O Início
A noite estava soberba. As luzes da cidade enchiam os olhos, ardendo até ao horizonte. A azáfama dos carros em constante movimento era imperceptível do meu ponto de observação de uma cidade mergulhada nas Trevas... As estrelas, eram invisíveis, estando o céu coberto por nuvens esburacadas, dando a sensação de um ser gigantesco a atravessar o meu espaço aéreo com o único objectivo de sugar a minha, e todas as outras almas. Ele não voava, arrastava-se à custa do nosso pavor, que deliciadamente transformava em divertimento... Por momentos, olhei para uma das lacunas no seu corpo, e senti-me flutuar na sua direcção... Pensei: "Não posso desistir! Não posso ser egoísta..." Mas a vontade cresce-me no peito como uma bola de neve desgovernada... "Tenho que me agarrar à vida" Mas como? Nada nem ninguém se quer agarrar a mim, ninguém se quer arriscar a perder-se do seu mundinho, da sua maldita ignorância, e da falta de vontade de mudar isso.. Fraqueza... Minha e deles... Não arriscam, e eu não os conheço... Parece que as entranhas do ser são revestidas de memórias minhas.. Boas, más... Mas todas em volta de guerras e sacrifícios. Todas envoltas num manto vermelho de sangue, marcadas pela luta pela sobrevivência... Já lhes consigo tocar: têm uma textura nada suave... Agrestes, estas memórias... O interior da criatura borbulha de actividade, constantemente raiado... Sinto-me invadido por um sentimento de tristeza, e de raiva. Como é possível haver tanta malvadez, tanta ignorância, e tão pouca vontade de evoluir? Eu quero evoluir... Parece que fui ouvido. No meu corpo surgem marcas, lembrando tribais... Duas asas esticam-se em todo o seu esplendor, vindas das minhas costas... Da minha garganta soltam-se gritos de angústia, de dor e desespero... Mas não sinto nada...

Cap. II
O Acordar do Demónio
As letras que desconheço, marcadas no meu corpo, ganham um brilho escarlate, libertando um intenso cheiro a queimado... Finalmente, o meu corpo acompanha o sofrimento da minha alma... Não dói, não queima, não arde. Mas está lá. Gostava de ver os meus uma última vez, pois sei que seria a última.. Mas de que me serviria? São tão humanos como eu era... Mas não querem mudar... Querem ficar agarrados à sua mortalidade fútil, querem ficar na memória dos outros, mas sabem que irão morrer... Eles até poderiam querer nunca morrer, mas não conseguem... De que serviriam se apenas querem problemas e conflitos? Não merecem! Vou sozinho para o outro mundo... Subitamente, tudo pára... Já nada borbulha, ou relampeja... Sinto-me abandonado no infinito, parado, a cair para lado nenhum. Abro os olhos, e vejo a cidade numa noite outrora soberba.. Mas ela move-se... O chão aproxima-se, e estendo as asas... Não consigo impedir a queda, as asas bloquearam.. Caí a uma velocidade brutal, e só depois elas se abriram... Sinto-me outra vez leve, e enquanto plano um pouco, vejo um corpo caído no chão... Pobre mortal.. Mas não... Era eu quem ali estava... Morto... Tive vontade de chorar, mas as lágrimas recusavam-se a soltar... Tão indignas de mim, no estado em que estou. Tentei gritar, mas saíu um guincho infernal, nada parecido com uma normal exclamação humana... "Serei eu um anjo?" Não o pensei como verdade, mas desejei-o ardentemente... Ajoelhado junto ao meu corpo humano, estiquei as asas, de modo a poder olhá-las... Eram negras como a noite, duras como pedra... O meu peito já não tinha os caracteres brilhantes, mas estava marcado por cicatrizes recentes, por deridas e rasgos cauterizados.. As minhas mão já não eram macias, já não eram humanamente belas... Eram enormes e cinzentas, com garras de vários centímetros... A visão tornou-se-me turva... Ensanguentadamente turva... Dei por mim a procurar um ser vivo que se movesse. que tivesse sangue quente... Um ser que tivesse um coração, para o arrancar, e para o sentir ainda a bater na minha mão... Estava com fome. Mas só pensava em carne viva... Nem sequer na minha outrora preferida refeição... Apenas carne fresca... Vi um grupo de humanos... Escondi-me. Não por medo, mas para os atacar... Já nada me era aterrador, era o mais forte... Eram cinco... Conseguia matar instantâneamente dois deles, outros dois enquanto estivessem em choque... Como um raio, executei o plano... Duas cabeças rolaram, outros dois corpos caíram... Encontrava-me cara-a-cara com o último... Começou a chorar, enquanto fugia, apavorado... "Vou deixá-lo ir... Vai, e avisa os outros! Começou hoje o meu reinado de terror..."

Cap. III
Prazer da Morte
Olho-me... Coberto de sangue... O cheiro, ainda vivo, a sangue... É deliciosamente doloroso bebê-lo... O meu desejo de sentir o coração ainda a bater na minha mão realiza-se, e só me dá ainda mais vontade de gritar... Gritos de satisfação... Mas não me sinto completo... Falta aqui alguma coisa... Procuro nos céus algum sinal... Procuro, e vejo (em tons de vermelho... a raiva é já parte do consciente...) algo que se move em sentido contrário às nuvens... Demasiado grande para ser uma ave... Sou poderoso... Sou invencível... Sou o maior, o melhor, e nada nem ninguém me faz frente... Tento levantar vôo. O impulso que dou é brutal... A minha força muscular deve ter aumentado uns bons milhões de vezes em relação à minha forma anterior... Começo a dar às asas, e a voar rapidamente em direcção ao vulto que vi poucos segundos antes... Desapareceu... Não pode ter ido muito longe... Resta-me apenas procurá-lo... Perscruto o ar á minha volta, e não vejo, mas sinto-o... É pouco mais pequeno que eu, mas emana uma energia que me queima um pouco a pele... Como se fosse radiação... Sigo na sua direcção, mas desaparece-me mais uma vez... Concentro-me, e sinto-o a apenas alguns metros...
-"Que raio de jogo do gato e do rato estamos a jogar?! O que és, e o que queres??" - digo eu... De repente, dou por mim a saber que não sou o único com esta forma... E afinal sou apenas mais um... Tenho a noção de que há mais "criaturas fantásticas"... De fantástico já nada tenho...
-"Nasceste meu inimigo... Pode ser que consigamos ser aliados... Mas se não te mostrares amigável, podes morrer já como meu inimigo..."
Não tive hipótese...

Cap. IV
A dúvida da Vida... Ou da Morte?
-"Segue-me..."
Sigo-o... Não sei quem é... Não sei quem sou... Já não sei o que faço, o que penso... O que sinto... Nunca os meus sentimentos tinham extravasado como agora... Paro, e penso... Tenho que me controlar... Sempre fui tão racional... Sempre pensei em tudo o que faço, o que digo... Como posso estar assim? Se os meus sentimentos estão assim tão visíveis, devo transparecer medo... Que nojo... Que fraqueza... Adopto uma outra atitude... Sou agora calmo... Calmo...
Rindo, aquele que eu ainda não conheço, diz:
-"Que engraçado... És o primeiro que não me ataca... E também o primeiro a controlar os próprios sentimentos..."- Mais baixo, diz: -"Hah! Se calhar a Eudora até tinha razão..." - Outra vez alto (não sei bem porque sussurrou antes... se calhar era um desabafo que eu não devia ter ouvido...) -"Bem, demonstraste ser realmente diferente dos outros... E isso faz-te merecedor de me conheceres... Sou Manthe, e chamaram-me há quinze séculos..."
Outros?! Mereço conhecer-te?! Chamaram-te?!...
-"Eu sou..."
-"Mais tarde saberás como te chamas... E não te questiones tanto... Não tão cedo... Já agora: eu sou uma "ela"..."
ELA consegue ler-me os pensamentos... Será que consigo também ler os dela?... Concentro-me... Mas apenas consigo que me doa a cabeça... ...Ela?!...
-"Mais tarde... Segue-me apenas..."
Mas já o estou a fazer há meia hora... Ou pelo menos assim parece... O relógio ficou se me na outra vida, portanto não o saberei tão cedo... Tento esvaziar a minha mente... A ideia de alguém me ler os pensamentos é aterradora... Sinto-me permanentemente invadido... Subitamente, ao controlar o pensamento, os sistemas de pensamento desligam-se... Apenas consigo observar, sentir, mas não raciocinar... Não consigo agir, apenas reagir instintivamente... Nem isso... O último objectivo que me impus é aquele que vou completar... O único, neste estado... Estou como que a dormir...
A dormir...

Cap.V
Fortaleza Neutra: Diabolicamente segura

Voando para cima e para Sul, finalmente chegamos a algum sítio, ou alguma coisa... Sinto-me a acordar... Manthe olhou para mim surpreendida:
-"Bem, para um recém-chamado, já vais muito avançado no domínio de ti próprio..."
-"A vida é dura, minha amiga..."
Pelos vistos este comentário não foi muito bem aceite... Manthe apenas acelerou bater de asas com uma expressão de desprezo... Senti-me bem por a ter irritado... Deu-me um gozo estranho... Mas tentei controlar-me...
De repente, Manthe estaca, e faço o mesmo. Balbucia algo que não percebo, e do nada aparece algo que associo apenas a um edifício futurista... Apenas este está a planar, e não preso ao chão... Tem amplas janelas, como que rectângulos prateados desenhados em fundo azul acinzentado das paredes. O topo, bastante mais estreito que a base, devido à forma piramidal da nave, está populado por gárgulas em pedra... Imóveis, mas vigiando constantemente os arredores da sua casa... Este misto de culto da Idade Média e futurismo berrante é contrastadamente lógico... Tudo está estudadamente colocado... Isso transmite segunrança, pois parece que a própria construção se antecipa a todos os obstáculos...
-"Agora, segue-me!"

Continua...